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Museu da Comunicação Hipólito José da Costa. Foto: Solange Brum

A Belle Époque em Porto Alegre

Publicado em 09/09/2020, 19:57

"Cidadezinha cheia de graça..."  Mário Quintana (1906-1994)

 

Em Porto Alegre, nas primeiras décadas do século 20, o modelo burguês europeu do "bem viver" era reproduzido nos espaços de lazer e de sociabilidades, como sociedades, confeitarias, cafés, os saraus domésticos, hipódromos, clubes de remo, velódromo (ciclismo), o futebol e as sessões de cinematógrafo. Considerada a nossa mais antiga e tradicional rua, a Rua da Praia, na época, era uma grande passarela, na qual o portoalegrense tinha o hábito de passear, exibindo os trajes da moda.  Era o footing... Vivíamos a "Belle Époque" !.     

Ao anoitecer, nela se assistia ao trottoir de mulheres, com a pecha de "má reputação", às quais a imprensa da época denominava de "horizontais". Estas eram as musas dos jovens acadêmicos que frequentavam a rua nos intervalos noturnos dos cursos, principalmente, de Direito, cuja faculdade foi criada em 1900. Quanto à sua importância, a Rua dos Andradas, consagrada pelo povo como Rua da Praia, o viajante Annibal Amorim (1876-1936) nos deixou, entre 1907 e 1908, o seguinte registro:

"Em Porto Alegre cada rua tem dois nomes: um popular outro municipal. É uma confusão diabólica para o recem vindo. A dos Andradas é a mais importante. É mesmo a via publica da moda."

Em 1900, na virada do século, havia em nossa Capital uma população de 73.274 "almas", 316 tavernas, 38 botequins, cafés e restaurantes, 10 quiosques, conforme registra a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros (PIRES, 1957). As novidades, como o telefone (1886) o cinematógrafo (1896) o automóvel (1906) e o bonde elétrico (1908), trouxeram lazer e conforto para o porto-alegrense.

O Positivismo na Capital gaúcha

A "Ditadura Científica", inspirada na filosofia de Augusto Comte (1798-1857), foi adaptada, em nosso estado, por Júlio Prates de Castilhos (1860-1903), sendo exercida pelo seu sucessor Borges de Medeiros (1863- 1961), que permaneceu no poder por mais de 20 anos.

De acordo com esta filosofia, a sociedade se constituía num organismo vivo, cuja finalidade era alcançar o bem da Humanidade. Sintetizada na frase "O amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim", a doutrina pregava a visão cientificista da realidade, valorizando os fatos sem nenhuma conotação metafísica.    Capitalistas e banqueiros administrariam a economia e os engenheiros estabeleceriam a união entre a teoria e a prática. A ordem social se constituía na base para atingir o progresso. Neste contexto, Porto Alegre se expandiu, cresceu, alterando, de modo gradativo, a sua paisagem açoriana.

A influência do positivismo, em Porto Alegre, perpetuou-se em sua arquitetura e estatuária. Durante o período positivista, surgiram imponentes construções, que foram modificando o visual citadino. Um exemplo bastante apropriado, entre outros prédios, é a antiga Prefeitura Municipal que foi construída sob a responsabilidade do engenheiro municipal João Cattani, tendo sido projetada pelo arquiteto veneziano Luiz Carrara Colfosco.  

Inaugurado, em 1901, o prédio do nosso antigo Paço Municipal nos remete ao poder e à consolidação do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) e seu ideário positivista. Ali, despachou, por mais de 20 anos, o nosso primeiro Intendente (prefeito) eleito, por voto direto, José Montaury de Aguiar Leitão (1858-1939). Nessa época, o voto não era secreto e as mulheres eram excluídas do processo de eleição.

O registro do passado

As transformações que mudaram o visual citadino e o comportamento dos porto-alegrenses, sob a inspiração do positivismo, foram registradas por fotógrafos da época, durante a longa gestão de José Montaury, que perdurou por 27 anos. Neste contexto, é importante que se registre um grande talento da história da fotografia em nossa capital: o ítalo-brasileiro Virgílio Calegari (1868-1937). Seu famoso atelier se localizava na Rua da Praia, entre a Caldas Júnior - antiga Payssandu -, e a General João Manoel, Este trecho, na época, era conhecido como a quadra dos italianos. Frequentar seu estúdio fotográfico era símbolo de status. Suas fotografias ilustraram revistas importantes da época, como a Máscara (1918- 1928) Kodak (1912 - 1923) e a Revista do Globo (1929 -1967).      

O fotógrafo amador: Lunara

Luiz do Nascimento Ramos (1864-1937) era o nome verdadeiro de Lunara, cujas atividades, como fotógrafo, foram marcadas pelo registro de personagens e lugares, na época, invisibilizados pela elite da nossa cidade, como a significativa presença africana e de imigrantes. Graças a ele, boa parte desta história, hoje, compõe nossa iconografia, sendo objeto de estudo acadêmico, visando a recuperar esta memória que foi apagada pela historiografia oficial, por considerá-la, na época, um subproduto cultural.  De acordo com os padrões vigentes, de então, fotografar um detento, entre os ditos "cidadãos do bem", ou um afrodescendente, constituía-se numa afronta ao modelo conservador, elitista e excludente, mas, no caso do fotógrafo Lunara, o advérbio de negação, em nome da arte, era descartado, inexistente..    

Economia

Ainda em 1901, ocorreu a importante Exposição Agroindustrial, no Campo da Redenção, atual Parque Farroupilha, exibindo novas tecnologias e os produtos que moviam a nossa economia No contexto econômico, foram surgindo, em nossa Capital, nossas primeiras fábricas: a Neugebauer (1891), Gerdau (1901) e a Wallig (1904).  O viajante Wilhelm Lacmann, em 1903, deixou-nos o seguinte registro:    

"Porto alegre possui, proporcionalmente, um próspero parque industrial. Áreas tais como: construção de navios, pregos de arame, móveis, artefatos de vidro sabão, fazendas e chapéus. A indústria porto-alegrense é protegida por elevados impostos para importação, o que proporciona a continuidade de sua prosperidade."  

E surge o automóvel 

Importado da França e adquirido pelos irmãos Grecco, que eram proprietários do Cinema Apollo, o primeiro automóvel - símbolo de modernidade - circulou, na Capital, em abril de 1906. O fato curioso, acerca deste primeiro veículo - um modelo "De Dion Bouton" - é que o único homem que sabia dirigir, em Porto Alegre, encontrava-se preso na Casa de Correção. Por meio de uma solicitação oficial, os irmãos Grecco se responsabilizaram, conseguindo, desta forma, a liberação do detento, que se tratava do italiano Marini Constanti. Este os levou para circular pelo centro da Capital, onde posaram para fotos, tendo a participação do famoso fotógrafo amador Lunara. 

O detento, que conhecia a mecânica e a operação de veículos motorizados, sentiu-se, naquela ocasião, com certeza, o homem mais importante da cidade.  Após a sua liberação, retornou para a prisão, mas o seu feito o introduziu na galeria dos nomes que fazem parte da História da nossa cidade. Existe uma fotografia, localizada pela pesquisadora e fotógrafa Eneida Serrano, na qual aparece o famoso Lunara e os irmãos Grecco instalados no famoso veículo. 

Há quem afirme que esta fotografia, na qual aparece o fotógrafo Lunara, registra um modelo da mesma marca, porém mais novo, fabricado em 1902, portanto não se trata do primeiro automóvel, cuja data de fábrica nos remete ao ano de 1900. O mais antigo jornal da Capital, ainda, em circulação, o Correio do Povo (1895), publicou, em abril de 1906, a chegada do nosso primeiro automóvel. 

As divergências fazem parte no campo da pesquisa, cabendo aos pesquisadores e historiadores a missão de elucidarem essas dúvidas, quando estas afloram e questionam dados até então tidos como irretocáveis. Isto só reforça a importância das nossas instituições culturais ligadas à guarda, à preservação e à difusão da memória, em seus múltiplos aspectos, em seu imprescindível papel de auxiliar com fontes, das mais diversas tipologias, o profissional e o estudante a desenvolverem suas pesquisas. 

O Teatro São Pedro

O hábito de frequentar o Teatro São Pedro, inaugurado em 1858, para assistir às companhias líricas, era sinônimo de status e elegância. Falecido em 2018, o professor e importante pesquisador Décio Andriotti, que era exímio conhecedor desta temática nos âmbitos regional e internacional, registrou, em seu artigo, A Música no Rio Grande do Sul / Uma síntese Crítica (2000), que a ópera foi apreciada de forma intensa em nosso estado. Em seus garimpos históricos, ele descobriu, em 1994, na Biblioteca Pública do Estado, a partitura de Carmela. Considerada a primeira ópera gaúcha, da autoria do compositor Araújo Vianna (1871-1916), esta ópera veio a público em 1902. O jornal A Federação (1884-1937), em 18 de outubro de 1902, assim, publicou: 

"Essa ópera do nosso patrício Araujo Vianna, cantada hontem, no S. Pedro, pela companhia lyrica Ferrari, é a estreia de um compositor, mas não é o trabalho de um principiante (...)" 

Importante que se destaque, também, os espetáculos teatrais encenados por grupos que vinham do exterior. No início do século 20, apresentou-se no Teatro São Pedro a Companhia Dramática Portuguesa de Teatro Moderno. Desta faziam parte a famosa Lucília Simões, atuando em Francillon, de Alexandre Dumas Filho (1824-1895), e Christiano de Sousa presente na peça Casa de Bonecas de Henrik Johan Ibsen (1828-1906). Já as óperas A Tosca e a Dama das Camélias eram anunciadas, pela Companhia de Zaira Pieri Tiozzo, no Polytheama, que se localizava na Rua Voluntários da Pátria (antigo Caminho Novo). Muitos atores, que se apresentavam nessas casas de espetáculo, eram oriundos de Buenos Aires, como registrou o Jornal do Comércio (1864-1911) nos dias 10 de janeiro, 06 de fevereiro e 13 de março do ano de 1900. 

A Educação

Na área da educação, durante a gestão do intendente Montaury, surgiram tradicionais estabelecimentos de ensino, como Sevigné (1900), Rosário (1904), Bom Conselho (1905), Parobé (1906) e Nossa Senhora das Dores (1908). Já no campo do ensino superior, foram criadas as nossas primeiras universidades: Faculdade de Farmácia (1896), Engenharia (1896), Medicina (1898) e Direito (1900), dando início à vida acadêmica em Porto Alegre.

A política de alfabetização, implantada pelo Presidente do Estado Borges de Medeiros, acompanhou também o desenvolvimento da Capital, impulsionado durante a gestão de José Montaury.

Ainda no ano de 1906, criou-se, em Porto Alegre, o Instituto Técnico Parobé, visando a qualificar o operário, por meio do ensino profissionalizante, de acordo com a doutrina positivista de Augusto Comte (1798-1857), que foi adaptada, em nosso estado, com o nome de "Ditadura Científica", servindo de inspiração a Júlio de Castilhos na elaboração da nossa primeira Constituição estadual de 1891. Segundo Sérgio da Costa Franco, em seu livro Ensaios de História Política (2013), esta Constituição foi motivo de duas revoluções que deixaram marcas profundas no Rio Grande do Sul: A Federalista (1893-1895) - a mais sangrenta com a prática da degola, totalizando 10.000 mortes -, e a Libertadora ou Assisista (1923). Nesta última, o grupo republicano dissidente - liderado por Assis Brasil (1857-1938) - combateu o governo de Borges de Medeiros, que se perpetuava no poder com eleições fraudulentas.

Espaços de sociabilidades e lazer

O portoalegrense, com menor poder aquisitivo, divertia-se pelos botequins, quiosques, e bailes populares. A elite frequentava espaços antigos, seletivos e tradicionais da cidade, como o já citado Theatro São Pedro (1858) a Sociedade Esmeralda (1873), a Sociedade Germânia (1855) - a mais antiga da nossa Capital - e a italiana Vittorio Emanuelle (1877); além dos banquetes no famoso Grande Hotel (1918) e no Clube do Comércio (1896) e dos prazerosos encontros na famosa Confeitaria Rocco (1912). A comunidade afrodescendente frequentava a tradicional Sociedade Floresta Aurora Fundada, em 1872, por negros alforriados, é a mais antiga no Brasil, ainda, em atividade. Nela, os afrodescendentes buscavam reproduzir o modelo burguês das outras sociedades frequentadas pela elite porto-alegrense. Havia também a Sociedade Os Venezianos, de caráter mais popular, que rivalizava, em seus desfiles carnavalescos, com a Sociedade Esmeralda. 

Voluntários da Pátria

De acordo com o pesquisa de Ricardo Eckert, na popular Rua Voluntários da Pátria, no ano de 1908, havia a presença de um intenso cenário musical. Assim ele registrou numa reportagem, há cincos anos, no jornal Sul 21: "Na rua Voluntários da Pátria, existiam 32 cabarés com música ao vivo. Como cada casa tinha quatro ou cinco músicos, isso representa cerca de 120 músicos. Tinha mais músicos ali do que na Cidade Baixa hoje".

O Famoso Chalé

Espaço de encontro e lazer do portoalegrense, o Chalé da Praça XV, construído no ano 1885, na Praça Conde d'Eu, atual Praça XV, era voltado à venda de sorvetes e de bebidas. Demolido, foi construído, em 1911, no mesmo local, em estilo "Art-Nouveau", um novo chalé durante a gestão do prefeito José Montaury. O prazer de ser fotografado pelos antigos lambe-lambes e encontrar-se com os amigos, nesse local, constituía-se numa prática do cotidiano do porto-alegrense. O Chalé da Praça XV faz parte da  história   patrimonial  cultural da nossa cidade.

A Primeira Greve Geral da Capital e o Operariado / 1906

Em outubro de 1906, eclodiu, na Capital, "A Greve dos 21 dias", na qual os líderes -  Francisco Xavier da Costa (1873 -1934) - socialista - e Polidoro Santos (1881-1924)  - anarquista-, reivindicavam oito horas de trabalho e melhores salários para os operários. Esta greve geral foi a primeira no Rio Grande do Sul, resultando em avanços e conquistas para o operariado. O jornalista Francisco Xavier da Costa (1873 -1934), nascido na Colônia Africana (atual Bairro Rio Branco) foi o primeiro vereador negro de Porto Alegre, tendo concorrido pelo Partido Republicano Rio-Grandense. 

Em 1908, funda-se, em 22 de abril, no salão nobre da Biblioteca Pública do Estado, o Instituto de Belas Artes, assumindo como seu primeiro presidente o Dr. Olímpo Olinto de Oliveira (1865-1956). Ainda neste mesmo ano, o empresário Ganzo Fernandes cria a Cia. Telefônica Rio-Grandense. 

No ano de 1909, chegou à Capital, vindo da França, o arquiteto Maurice Gras, que assinou o contrato para a construção do atual Palácio Piratini. No ano de 1912, o eng. Affonso Hebert, deu início às obras da Biblioteca Pública, cuja continuidade da construção ficou sob a responsabilidade do engenheiro Teófilo Borges de Barros. Suas fachadas se tratam de uma verdadeira obra de arte, onde podemos apreciar o "Calendário Positivista", cujo conjunto escultórico é composto de bustos dos grandes vultos da humanidade. Atualmente, este nobre espaço cultural é dirigido por Morgana Marcon. Ainda em 1912, em nossa cidade, foi fundado o tradicional Colégio Militar.

A Imprensa da época

O cotidiano da nossa cidade, desde o surgimento do primeiro jornal "O Diário de Porto Alegre", em 1º de junho de 1827, está impresso nas páginas de diversos periódicos que o sucederam, fazendo parte da história da nossa Imprensa local. No início do século 20, havia 142 periódicos circulando no Estado (RÜDIGER, 2003).

Durante o Segundo Império e também nas primeiras décadas período republicano, circulavam, em Porto Alegre, importantes jornais, como: o Jornal do Comércio (1865-1911), A Federação (1884-1937), A Reforma (1869-1912), Deutsche Zeitung (1861-1917) Correio do Povo (1895), A Gazetinha (1897-1900) Corymbo (1883-1943) - ligado à imprensa feminina - O Independente (1900-1923), Petit Journal (1898-1903), Stella d' Itália (1902-1925), O Exemplo (1892-1930) - jornal de resistência e luta contra o racismo na capital -, e a Gazeta do Comércio (1901-1906), entre outros jornais. È Importante que se destaque, também, a presença das revistas:. Máscara (1918- 1928) Kodak (1912 - 1923) e a Revista do Globo (1929 -1967).

Segundo o historiador Sérgio da Costa Franco, em seu livro Gente e Espaços em Porto Alegre (2000), quando finalizou o século 19, o Jornal do Comércio disputava, com seu rival o Correio do Povo, o título de ser o periódico de maior tiragem e circulação no Rio Grande do Sul. O mais antigo jornal a circular, na capital, é o Correio do Povo, fundado pelo sergipano Caldas Júnior (1868-1913), em 1º/10/1895. No interior do Estado, o periódico mais antigo, ainda, em circulação, é a Gazeta do Alegrete, fundada por Luiz de Freitas Valle, circulando desde 01 de outubro de 1882.

O Museu guardião da história da Comunicação

Os títulos de periódicos citados, ao longo deste texto, fazem parte da importante hemeroteca do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa (Musecom) localizado na Rua dos Andradas / 959, em pleno Centro Histórico da nossa cidade. 

O prédio do MuseCom foi construído pelo engenheiro Teófilo Borges de Barros, tendo sido inaugurado, em 06 de setembro de 1922, durante as comemorações do Centenário da Independência do Brasil (1822-1922), contando com a presença das autoridades da época, entre outras do presidente do Estado Augusto Borges de Medeiros, e representantes dos principais jornais que circulavam na época. A bela estátua, que representa a Imprensa e decora a fachada principal do prédio, é de autoria do escultor italiano Luis Sanguin (1877-1948).  

Desde 10 de setembro de 1974, após também ter sido sede do Jornal do Estado (1938-1942) e do Diário Oficial do Estado, este local abriga o Museu da Comunicação Hipólito José da Costa (MuseCom), que neste mês completará seus 46 anos de atividades culturais junto à sociedade gaúcha. Fundado durante as comemorações do bicentenário (1774-1974) de nascimento de Hipólito José da Costa (1774-1823) - "Patrono da Imprensa no Brasil"- o museu tem como missão a guarda, a preservação e a difusão da memória da Comunicação. Atualmente, o museu é dirigido pelo museólogo Welington Silva.

Um Príncipe Negro morou na Lopo Gonçalves

Conforme nos narra o escritor e jornalista Roberto Rossi Jung, em seu livro O Príncipe Negro (2007), na Cidade Baixa, na Rua Lopo Gonçalves, a partir de 1901, morou Custódio Joaquim de Almeida (1831?-1935), "o Príncipe Negro", figura ligada à nobreza africana e babalorixá (sacerdote no culto africano). O príncipe criava cavalos árabes e falava inglês e francês, com desenvoltura, causando surpresa à sociedade da época, habituada a ver o negro com o estereótipo da pobreza e de quem foi escravizado. Por sua vez, segundo o historiador Décio Freitas (1922-2004), em seu livro "Brasil Inconcluso" (1986), o negro, após uma abolição inconclusa, ficou alijado do seu direito à cidadania plena. Sem inserção social e um projeto voltado à educação, surpreendia-se  também com a figura africana, nobre e elegante do Príncipe de Ajudá, desfilando de carruagem pelas ruas de Porto Alegre.   

Frequentadas pela elite da cidade, as festas, que ocorriam na residência do príncipe Custódio, eram marcadas pela presença de bebidas importadas acompanhadas de finas iguarias. Além da tradição oral e o registro de seu falecimento, em 28 de maio de 1935, nos principais jornais da época, o único documento oficial é seu atestado de óbito que se encontra no Cemitério Santa Casa de Misericórdia.

Os principais periódicos da época, como "A Federação" (1884-1937), Diário de Notícias (1925-1979) e o Correio do Povo (1895), registraram a morte do príncipe de Ajudá, destacando sua importância nobiliárquica, donde se conclui que o príncipe, indubitavelmente, foi figura notória na capital gaúcha.

O Futebol

Na Porto Alegre de José Montaury, no período de 1903 a 1909, surgiram duas grandes potências do nosso futebol: o Grêmio (1903) e o Internacional (1909), a eterna dupla Grenal. No dia 18 de julho de 1909, no Campo da Baixada, ocorreu o primeiro Grenal da história do futebol gaúcho. O resultado foi a vitória do Grêmio com  um vantajoso placar: 10 x 0. Havia também, neste período, o Fuss Ball que, assim, como no Grêmio, predominava jogadores descendentes de alemães.  Já o Internacional contava com a presença dos italianos. 

Infelizmente, nossos primeiros times, em suas origens, eram racistas e as teorias sobre Eugenia (a ideia de uma raça superior), na época, começavam a circular no Brasil, fortalecendo a exclusão e o preconceito, Diante da discriminação racial, na primeira década de 1910, foi criada a Liga da Canela Preta, reunindo reuniu negros, mulatos e sararás, que eram oriundos dos chamados territórios negros da cidade, como a Colônia Africana (Atual Bairro Rio Branco), antiga Ilhota (imediações do Ginásio Tesourinha e do Centro Municipal de Cultura), Areal da Baronesa (limite entre os bairros Cidade Baixa e Menino Deus) e Mont'Serrat. A Liga da Canela Preta era composta por nove times; 8 de setembro, Rio-Grandense, Bento Gonçalves, Primavera, !º de Novembro, União, Palmeiras, Aquidabâ e Venezianos

A resistência cultural ocorreu, nesses espaços, por meio do legado do samba, das religiões de matriz africana e da Liga da Canela Preta. Infelizmente, os interesses e a especulação imobiliária expulsaram - grande parte dos seus moradores -, para fora da urbe, desconsiderando a memória, a história e a tradição cultural ali presentes. A exceção ocorreu  no tradicional Areal da Baronesa onde se situa o Quilombo Urbano do Areal, na Av. Luiz Guaranha, que foi reconhecido por lei, em 2015, após longa batalha judicial de sua comunidade. Com o afastamento de centenas de famílias desses territórios negros nasceu, por exemplo, a imensa comunidade do Bairro Restinga. Nossos primeiros blocos carnavalescos, que foram precursores das escolas de samba, eram oriundos desses territórios, a exemplo de Bambas da Orgia (a mais antiga da Capital, 1940) e Imperadores do Samba (1959    

O Pioneirismo, no Rio Grande do Sul, da quebra do preconceito racial no futebol, é creditado ao Sport Club Americano, fundado, em Porto Alegre, no dia 04 de julho de 1912. Este, em 1928, sagrou-se campeão citadino e estadual, ostentando em seu quadro, de forma corajosa, dois negros: o Alegrete / goleiro e o Barulho/ meio - campista, abrindo o caminho para outros talentos que despontaram na história do nosso futebol. No ano de 1913, surgiu o Sport Club Cruzeiro, também, com características elitistas, não admitindo a presença de negros. 

Atualmente, nesta área, na qual se localizava a Ilhota, onde ocorriam os jogos encontra-se a Praça Sport Club Internacional que homenageia o time colorado e sua torcida. A Ilhota foi o berço do Rei da Dor de Cotovelo, Lupicínio Rodrigues (1914-1974) ou, simplesmente, Lupi. Seu nome se imortalizou no cancioneiro brasileiro. Como seu pai havia sido rejeitado nos quadros do Internacional, decepcionado, Lupi, tornou-se gremista, vindo a compor , em 1953, a terceira versão do hino do clube.

O termo Grenal foi criado, em 1926, pelo jornalista e gremista Ivo dos Santos Martins, enquanto rabiscava num guardanapo na Confeitaria Colombo. Na cidade de Rio Grande, ao adentrar o século 20, fundou-se, sob a liderança do alemão Johannes Christian Moritz Minnermann, o primeiro clube de futebol do Rio Grande do Sul: o Sport Clube Rio Grande.

O Cinema

O Correio do Povo, em 26 de fevereiro de 1901, anunciou a apresentação do Cynematographo, com exibições diárias, no Teatro São Pedro. Embora as críticas da elite conservadora, as exibições continuaram até o ano de 1909.

Em 20 de maio de 1908, foi inaugurada a primeira sala de cinema, o Recreio Ideal, na Rua dos Andradas, em frente à Praça da Alfândega. O local era propriedade de José Tours, que representava uma fábrica espanhola de aparelhos cinematográficos.

No dia 27 de março de 1909, data oficial do Cinema Gaúcho, foi exibido o primeiro filme de ficção no Rio Grande do Sul, cujo título é Ranchinho do Sertão. O pioneirismo do Cinema, em nosso estado, remete-nos aos nomes de Eduardo Hirtz, Francisco Santos, Carlos Comelli, Laffayete Cunha, Emílio Guimarães, entre outros.

Em 29 de novembro de 1913, foi inaugurado o primeiro cineteatro de Porto Alegre, o  Guarany, que se localizava, na Rua dos Andradas, em frente à Praça da Alfândega, num prédio projetado pelo arquiteto alemão Theo Wiederspahn (1878-1952). No período de 1908 a 1930, Wiederspahn  realizou , em Porto Alegre, inúmeros projetos, a exemplo da Delegacia Fiscal da Fazenda no Estado (1914), que, desde 1978, é sede do Museu de Arte Ado Malagoli (MARGS) e do antigo Hotel Majestic (1916-1933) onde, a partir de 1990, passou a funcionar a Casa de Cultura Mário Quintana. 

A Casa Elétrica e a gravação do primeiro tango

Fundada em 1º de agosto de 1914, no nº 220, da Av. Sergipe, a Casa Elétrica foi a quarta empresa a fabricar discos do mundo e pioneira na América Latina. Anterior à sua criação, só havia as empresas americanas Victor Talking Machine Company, - posteriormente RCA Victor - Columbia Records e a alemã Odeon. Esta última possuía uma fábrica no Rio de Janeiro.

Além de ser uma das pioneiras no mundo da indústria fonográfica, na Casa Elétrica foram prensados os primeiros tangos da América Latina e sambas do Brasil, assim como clássicos da música gaúcha, Segundo o pesquisador Ricardo Eckert, foram gravados cerca de 1,5 mil títulos, durante os  10 anos de atividades da empresa.. Há uma luta antiga em prol da recuperação e restauro da famosa Casa Elétrica, um legítimo patrimônio cultural da nossa Capital. 

A Gripe Espanhola

No fatídico ano de 1918, a partir do mês de outubro, surgiram os primeiros casos da Gripe Espanhola, causando, ao longo de três meses, 1.316 óbitos numa população de 192 mil porto-alegrenses. Frente ao pequeno percentual de médicos, Montaury dividiu a cidade em 33 quarteirões, onde, em cada um, havia um médico e estudantes de Medicina, para atender a um grande número de doentes. 

Durante esta epidemia, muitos profissionais foram contaminados e faleceram, como registra o livro publicado, em 1998, pela editora PUC / RS, cujo título é "A História de Uma Epidemia: A Hespanhola em Porto Alegre, 1918 ", da historiadora Janete Abrão. Durante a sua pesquisa, o acervo do MuseCom , principalmente, por meio de sua importante hemeroteca, foi imprescindível  na conclusão exitosa de seu trabalho.

Achyles Porto Alegre (1848-1926)

O jornalista e escritor Achyles Porto Alegre, em seu livro "Através do Passado", pp 45-6,  narra as transformações do dia a dia da urbe de maneira quase poética, como registra este trecho de uma das suas crônicas:

"Ao invés da iluminação azeite de peixe - a luz elétrica, ao invés da maxambomba, que não matava ninguém - o elétrico e o auto, que como epidemia, estão sempre fazendo vítimas - eis o que o progresso nos trouxe.  É doloroso - mas é bonito. Não temos mais frades de pau à porta de casa, nem, de pedra às esquinas. Temos postes telefônicos e de luz elétrica, que nos trazem a casa, de longe, num relâmpago, a palavra e a luz."

Ao compasso inexorável do tempo, da condição de Vila (1810) à elevação da categoria de Cidade (1822), título que lhe foi outorgado por dom Pedro I (1798-1834), Porto Alegre seguiu crescendo? Amada pelos gaúchos de todas as querências, ela se tornou cosmopolita sem perder a sua referência açoriana, que deu início a esta longa história de alegrias, conquistas, dores e sonhos..